É porque a fé te saiu das mãos.

Falávamos de abismos. De dar a ponta dos dedos mas não a mão toda. Falávamos dos anos que existem em nós. Anos que não vivemos. A idade que não temos. A dor que nos atormenta mas que não devia existir. Somos jovens. Deveríamos ser jovens. Não ter a preocupação de querer tudo. Porque deveríamos saber ir devagar. Mas faz muito tempo que não sabemos ir devagar. É no abismo da descrença que estamos. Mas ainda existe a fé. Sim a fé existirá sempre. Não estamos no mesmo barco das pessoas que se acomodam. Que aceitam qualquer pessoa. Que se atiram para partilharem uma vida com uma pessoa que não é a pessoa. Mas foi a melhor que encontraram. E aí pensam que dão um murro na solidão. Engano certo. Fazem planos, promessas, gastam palavras e se auto-intitulam de felizes. Mas não são. Tu e eu sabemos que não são. Desejam o mediano e foi isso que tiveram. Quem aceita por menos do que o tudo não é feliz. No máximo é quase feliz. Será sempre um quase. Nunca um tudo. Não o pode ser. Não é isso que é a paixão. E de todo não será isso o amor.

Foi pela palavra que me dei. Foi pelo corpo que me assumi. Mas nunca pelo gesto eu enredei. Desculpa. Engano-te. Existiram duas excepções. Em que o gesto implodiu na palavra e o tudo nasceu em mim. Mas tu sabes como é fácil chegar pela palavra às pessoas. Como é fácil abrir um coração dessa forma. O falar. Como é fácil falar. Dizer. Discursar. Amar sem amar pela sílaba. O depois. É no depois da palavra assentar que pode ou não acontecer o momento. O começo. É no reconhecer do gesto que se dá a entrega. Agora diz-me. Quantas pessoas reconheceram os teus gestos? O passo que dás. O salto. A entrega. Quantas? Decerto, não saberás. Ou pelo contrário, tens o número em ti. Porque aí o inefável aconteceu. Sei que sim.


Dizia-te. Não me custa o primeiro passo. A troca de corpos. A presença inocente que se vai criando. Nada disso me assusta. Até gosto. Sim, ainda me acontecem as borboletas no estômago. O que me persegue é a continuação. A presença. A permanência. O estado das coisas e a sua constante mutação. Ou melhor, a estabilidade. A calma. A paz. O início da partilha. Ao fim ao cabo tudo é partilha. Interrogo-me aqui. Porque sinto-me incapaz. Tu entendes. A incapacidade que te prende os músculos, que te amortiza o coração, que desfalece a esperança. Que faz com a tua fé seja apenas um prato desfeito em cacos pelo chão.

Dói-me o desatino que me causa esta lucidez de mim. Mais do que me dói, a desilusão daquele que acreditou na amostra que tu lhe ofereceste.

Quanto tempo demorará este abismo?
Quanto mais tempo levará a nossa entrega?

De quanto mais de nós temos de perder para renovarmos toda a escuridão que nos afasta cada vez mais da vida?


(texto escrito em 12/08/2010 e um dos meus favoritos)

*imagem retirada daqui


 

Sem comentários:

Enviar um comentário