Conversa de hora de almoço.

Eu: Durante anos usei o meu corpo e usei o corpo de outras pessoas por causa dos bons momentos. Por causa, do desejo, do tesão. Da liberdade. Da ausência de amarras. Por achar que isso é que era viver. Que os momentos cheios de pele eram o verdadeiro viver. Fugi de tudo o que me poderia viciar. Não a pele. Mas os restantes membros. Fugi para não conceder a ninguém o poder de me despedaçar. Corri, sabes? Corri durante anos. Nove anos, ao certo. O primeiro momento que me recordo foi a dor da primeira desilusão. Não foi uma desilusão qualquer. É bom que se saiba. Já te falei disto, uma vez. A primeira desilusão, os primeiros estilhaços do coração. É a partir daqui que a vida nos invade de forma diferente. Menos suave e mais agressiva. Durante anos, agi como que a vingar a dor que me provocaram. Não resultou. Nem o facto de ter ressuscitado me deu uma nova liberdade. Ou um novo coração. Porque nada volta ao inicio. As marcas ficaram para sempre alojadas. Ninguém se engane. Tudo muda. Por mais que neguemos. Gastei-me. Ao ponto de não saber identificar de forma certa os sentimentos. Ao ponto de quase não sentir nada no corpo. O que sinto é fruto da minha imaginação. Gastei o corpo e agora não sei o que fazer dele. Como o entregar. Como usufruir do que ele me tem para dar. Portanto, é como se eu e ele não nos reconhecêssemos. Ele culpa-me. Eu não o identifico como meu. E a única coisa que hoje sei é que não valeu a pena. O vazio que ficou, é demasiado grande para o consertar. Não sei como o fazer. Há um intermédio infalível entre o corpo e o coração. E a mente, a mente deixou de controlar o que quer que seja.

Ela: Tu és um mundo. Tu cuidas dos outros. Tens, por acaso, percepção de quanto é que tu cuidas dos outros? Tu és tudo, a tua polivalência é o que de melhor e pior trazes em ti. Porque se tu és um mundo, as pessoas olham para ti, e não visualizam como tu também cais. Como tu também sofres. Como tu também precisas que cuidem de ti. Como tu tens igualmente necessidades. Como precisas de colo e de alguém que seja um mundo em ti. Sim, o que tu mostras de ti, afasta-te das pessoas. Elas deixam de te ver porque ocupas demasiado. É isso que eu vejo em ti. Ninguém pergunta a um mundo se ele está bem. Quem é que se iria lembrar disso? Ninguém. Desculpa, mas ninguém. Precisas de mostrar aos outros que tu também és humana. E na verdade, igual a qualquer pessoa. Permite-te.



*imagem retirada daqui


1 comentário:

  1. Transportamos em nós um pouco de todos os outros com que nos cruzámos e que nos marcaram. Isso é inevitável. Beijinhos.

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